A Bicicleta

A Bicicleta

Resolvi passar a ir de bicicleta para a escola. Com ela consigo engolir mais rapidamente a paisagem. Passo ao lado de pessoas que vão de costas viradas para mim. Pessoas que vêm de frente a falar com o telemóvel e que por isso mesmo se lhes tocar elas nem me vêm. Alguns adultos são demasiado expressivos e o seu olhar reflete algum desejo de estarem no meu lugar. Há quem sorria para mim. Porquê? Porque me vêm feliz e isso pode fazer inveja a muitos adultos. Em geral ser-se jovem é não valorizar essa linha cronológica e sequencial na qual construímos as nossas vidas e que chamamos Tempo. Ser-se adulto é ter-se consciência dessa linha cronológica e sequencial e lamentar não ser jovem para poder maximizar essa linha a nosso favor. O meu pai chegou-me a dizer que um músico chamado Prince afirmou isto acerca do tempo: “O tempo é uma armadilha. Supostamente um homem não deveria de morrer”.

Andar de bicicleta é viver, dando aos pedais para aumentar o património do tempo, aumentar o património da paisagem, aumentar o património da aventura e aumentar o património da visão. A este património é vulgar chamar-se viagem. As maiores descobertas do mundo foram feitas com viagens. Anualmente até se institui para todas as famílias um período de tempo propício à viagem a que se deu o nome de férias.

Nas viagens de bicicleta podemos colecionar rostos, caminhos, atalhos, pessoas, situações, ruas, riachos e até aldeias. Colecionamos inclusive raios de sol que por vezes nos devolvem cegueira e escuridão apenas por milésimos de segundo. Alguns sorrisos que tenho guardados na minha caixa dos sorrisos colhi-os quando andava de bicicleta e me cruzava com as pessoas. Somos até produtores de vento quando andamos de bicicleta. Porque quando mais rápido pedalarmos mais deslocação do ar originamos. As flores, os campos e as estradas têm outra vida quando nos deslocamos de bicicleta. Pedalamos e o nosso olhar vai fotografando o nosso percurso. Nas curvas inclinamo-nos e temos visão de nave espacial. Os cães sentem-se ofendidos com a nossa altivez e perseguem-nos a ladrar. Os gatos sentem-se confusos e fogem. Os condutores sentem-se incomodados pela prudência de abrandar. As crianças olham e perguntam às mães se podem andar só um bocadinho de bicicleta antes de fazerem os trabalhos de casa. Os autarcas discutem se hão-se aprovar ou não mais ciclovias a cada ano que passa. Como se pode ver conseguimos mudar o mundo sem gastar dinheiro andando de bicicleta. Podemos fazer muitas curvas e percorrer caminhos sinuosos mas fazemos sempre o regresso a um ponto inicial. Provavelmente o nosso ninho. Não são círculos perfeitos mas é como se andar de bicicleta originasse uma força centrípeta e uma outra centrífuga que nos aproxima de um centro imaginário, o tal ponto inicial.

A vida pode bem ser uma circunferência gigante com um ponto inicial, o do nosso nascimento e à medida que vamos crescendo o raio da circunferência vai aumentado. Na nossa geração já não é possível voltar ao ponto inicial, tudo recomeça noutro ponto inicial para os nossos filhos e assim sucessivamente. É curioso mas para cada um de nós o tempo afasta ou aproxima as pessoas? O tempo é de facto uma armadilha porque mais frequentemente afasta. Afasta-nos das pessoas e do ponto inicial que vai ficando cada vez mais longínquo. Em cada ponto da nossa vida podemos nos interrogar onde estão os colegas que andaram connosco no infantário? Onde estão muitos membros da família do nosso pai ou da nossa mãe? Onde estão as pessoas que nos foram apresentadas por amigos ou parentes? Onde estão agora? O que fazem agora? Frequentemente e à medida que nos vamos afastando do centro da grande circunferência esquecemo-nos de grande parte dos seus nomes. Cruzaram-se connosco num ponto algures na grande circunferência, até podemos ter rido com essas pessoas e ter sonhado com essas pessoas mas da maioria o tempo vai afastando a sua presença. Nos círculos do dia-a-dia para que pudéssemos voltar facilmente às raízes ou ninho o futuro deveria ser sempre a subir. Assim quando quiséssemos voltar à raiz bastava escorregar caso estivéssemos a caminhar ou deixar de pedalar para descer caso estejamos de bicicleta.


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