A dama
das borboletas
A Praça é
antiga, povoada por pessoas e pombos que se lhes colam num deambular sinuoso e
sem destino. A flanquear um dos seus lados está a estátua de um poeta filho da
terra. Frequentemente as mães experimentam sentar-se nos bancos de madeira que
oferecem repouso e assim estas podem vigiar os filhos que correm contentes pela
praça. É frequente vê-las brindar os filhos com gelados ou gomas a troco do bom
comportamento ou da simples escapadela à rotina dos dias. O sol costuma espreitar
e beijar a praça durante as tardes de quase todas as estações.
Lembro-me
da primeira vez que a minha mãe me trouxe a esta praça. Achei que para mim este
podia ser perfeitamente o centro do mundo. Pela primeira vez na vida pudera
sentir o significado de uma palavra tão imaterial como a palavra Cosmopolita. E
lembro-me que da primeira vez que aqui vim sozinho reparei em algo muito
peculiar.
Algures
de uma das varandas que ladeiam a Praça o som de um violino irrompe como um
pincel que tentasse arrastar as cores para uma aguarela. Pedaços curtos de
melodias revezam com o ressoar da afinação de cordas. Alguns transeuntes
estacam o passo para se certificarem que o som agradável é produzido localmente
e é oferecido por uma das varandas. Contam-se rostos expectantes em adivinhar
qual a varanda dos prodígios. Olham para a direita, olham para a esquerda e
avançam repetindo várias vezes esta missão voluntária que de bom agrado
acrescentam ao seu caminhar.
Vir à
baixa da cidade tornou-se prazeroso e aventureiro. Há melodias que alguém tece
e que uma das varandas oferece. Qual será e de quem será. Alguém erudito? Quase
de certeza. Há arpejos rapidíssimos nestas toadas de violino que quase
desvalorizam os poucos sons estridentes de desafinação. Mas há pedaços de melodias
afinadíssimas, a fazer delirar quem aqui passa na praça.
Alguns
turistas cochicham para os acompanhantes, os nomes possíveis para as partituras
e para os compositores. Foi aí que repetidas vezes o nome Paganini veio até aos
meus ouvidos. Outros nomes vieram de igual modo mas o meu cérebro não os
reteve. Pouco importa pois para mim o centro do mundo é aqui. Alguns turistas
preparam os telemóveis ou as câmaras para filmarem o misterioso autor das
melodias. Mas é em vão. Pode ser de uma qualquer varanda com cortinas
esvoaçantes desde o primeiro ao terceiro piso de cada prédio que ladeia a
praça. Ir para as aulas tornou-se desejável. Vir das aulas tornou-se ainda mais
apetecível. E faltar às aulas para vir à praça e ouvir alguém a tocar
repetidamente o violino... Bom... Também aconteceu parcas vezes. Mas houve um
dia em que uma análise de consciência levou ao nascimento de atitudes de
compensação. A mais inesquecível foi a de começar a fazer os deveres de casa
aqui num destes bancos da Praça. A minha mãe notou que estou a chegar a casa
mais tarde e mostra alguma inquietação. Fica um pouco incrédula quando afirmo
que os deveres de casa já estão começados ou quase feitos. Mas como duvidar é
uma interrupção da confiança, ela remete-se em silêncio imediatamente antes de
continuar a checar a lista de tarefas diárias.
À noite
na minha cama em vez de carneiros, conto os rostos possíveis e imaginados da
pessoa que tão virtuosamente toca aquele violino. Pessoa madura? Pessoa jovem?
Aprendiz? A noite acacha-me como um segundo manto que também é habitado por
estrelas e sonhos. Quem será que toca assim dando luz e calor aquela praça
centenária e cosmopolita? Quem será que toca aquele violino?
Com o
luar a praça oferece-nos uma luz de amarelo vomitada que brilha com esplendor.
Após passos descontraídos as pessoas encontram-se nos cafés com chávenas
fumegantes nas mãos e o olhar posto a deambular pela praça, onde sombras
solitárias passeiam os seus donos. A mímica noturna de corpos arrastados
repete-se. O foco do desejo que vai da lassidão até à lua também se constrói
aqui na praça.
E se
amanhã a pressa não rugir há aqui na praça um violino cuja música se impregna
nos roteiros desta cidade.
Um dia
não houve ginástica resolvi vir à baixa e surpresa. Uma rapariga nova estava
sentada num dos bancos da praça a tocar o violino. Sim as melodias e os
compassos eram os mesmos, tinha de ser ela quem se ouvia à varanda. Agora sim.
É possível vê-la e admirá-la. Tem um vestido branco de alças, o cabelo
apanhado. É magra a pele é morena, lisa e adivinha-se suave. O olhar é
universal, profundo, sem se fixar em nada. A cor dos olhos é misteriosa. Quando
para de tocar sorri agradecendo as palmas dos transeuntes. Alguém grita Bravo
Cláudia, e depois muito baixinho segreda à companheira do lado. Ela é
fantástica nem parece invisual.
Na altura
nunca tinha perguntado a alguém o que era invisual mas em milésimos de segundo
a minha intuição devolveu-me o significado correto desta palavra. Fiquei
impressionado. Como é possível alguém tocar tão bem sem ver o sol ou uma flor?
Como é possível sorrir sem poder ver o pai, a mãe ou um irmão? Como se pode ser
tão bom em algo ao ponto de ultrapassar em capacidade aqueles que têm visão? E
como se pode possuir um olhar tão penetrante estando desprovido da faculdade de
ver? Desprovido da faculdade de guardar imagens bonitas de pessoas, coisas e
situações e ficar com elas, e dormir com elas, e sonhar com elas...
Cega.
Quem diria. Mas toca fantasticamente o violino e embora cega tem um sorriso agradável.
Como é que é possível? Como é que ela é capaz?
O pedaço
de mar que nos é permitido transportar com o nosso corpo, trazemo-lo nos olhos.
Há gaivotas que libertamos quando vemos coisas bonitas e pessoas que nos
agradam. Embora cega, os olhos de Cláudia libertam paz e poesia rasgando as
tardes em pedaços de violino.
Hoje
resolvi vir mais cedo até há praça. O Sol nem sequer quis aparecer para
brilhar. Eu sim, estou impaciente porque quero ver o brilho de um outro alguém.
Enquanto é demasiado cedo para Cláudia aparecer vagueio pela praça com a minha
câmara escura nas mãos. Divirto-me a captar as imagens possíveis desta tarde
que apareceu assim sem sorrir. Aperfeiçoei a minha câmara escura
introduzindo-lhe um espelho, dissipando assim a obrigatoriedade de ver as
imagens invertidas. Agora consigo ver as imagens na posição correta. E ainda
bem porque à praça chaga um grupo de crianças de mãos dadas e a cantar. São do
pré primário e as duas educadoras convidam-nas para se sentarem nos dois bancos
virados para a praça.
“Agora
meninos cada um vai tirar do bolso do bibe o papelinho com a palavra que vos
foi atribuída. João começamos por ti. Deixa-me ver a palavra que te calhou:
PAZ. Muito bem João, coloca agora o teu papelinho na caixinha dos desejos”.
“Matilde
mostra-me o papelinho com a tua palavrinha: AMOR. Certo, todos precisamos.
Podes colocar o papelinho na caixinha dos desejos.”
“Rute
deixa-me ver a tua palavra. ABRAÇO. Mas que bem Rute…. Meninos vamos todos dar
um abraço ao companheiro do lado.”
Um
reboliço de felicidade apoderou-se de todas as crianças que se abraçam
apressadamente em sorrisos muito desequilibrados.
“Não se
esqueçam de colocar os vossos papelinhos dentro da caixinha dos desejos...”
Ouviu-se mais uma vez.
Sem aviso
prévio alguns pingos de chuva inusitada vêm visitar esta praça. Num curto
espaço de tempo os pingos engrossam e multiplicam-se interrompendo a atividade
desta tarde. Com a chuva a insistir algumas crianças sentem-se desamparadas
ficando na duvida se irão requerer atenção através de uma sessão de choro ou
não.
As
educadoras conseguiram atender a todas as crianças num curto espaço de tempo.
Colocando-as a salvo da chuva na carrinha que as trouxe até aqui. “Vamos
meninos, voltaremos aqui numa outra altura..” Ouviu-se de uma das educadoras.
Recolhi-me
numa portada nas imediações da praça e pude reparar que a caixa dos desejos com
os papelinhos das crianças ficara esquecida num dos bancos. Apressei-me a
correr por entre a chuva cujos pingos insistiam em colonizar todos os planos
verticais, horizontais e oblíquos. Coloquei a caixa dos desejos debaixo de um
braço e alcancei de novo a portada do prédio. Passados dez minutos a chuva
afastou-se com a mesma modéstia da chegada. A tarde ainda sem sol parece ter
adquirido ainda mais luz apesar de tudo.
Cláudia
desceu as escadas de mão dada com a irmã que lhe pergunta se vale a pena ficar
aqui pela praça. Tratei de marcar a minha presença com um Olá sonoro. Cláudia
sorriu afetuosamente, o que me deu muita felicidade. A irmã passou-lhe o estojo
com o violino. Fomos falando de coisas banais à medida que nos dirigíamos para
os bancos ainda molhados.
Os bonitos
lábios de Cláudia obedeciam a um estreitamento e a um alongamento a pedido do
seu jeito de sorrir. A comunicação com Cláudia embora incipiente tornava-se
deste modo cada vez mais prazerosa.
Depois de
alguns 5 minutos de conversa e já sentados nos bancos previamente secos com um
pano, Cláudia retira o violino do estojo e inicia as suas melodias. As pessoas
passam e sorriem. As pessoas passam e olham e talvez sonhem e talvez voltem a
sorrir quando já estiverem em casa para recordar.
Vou
captar estes rostos envolvidos na melodia de Cláudia com a minha câmara escura.
Por vezes basta deixar a câmara escura sozinha em cima de um apoio alto que ela
vai recolhendo do quotidiano as paisagens possíveis. Desta vez coloquei a
câmara escura no banco ao lado da caixa dos desejos. E agora que olho de novo
para a caixa dos desejos, confesso que ainda não pensei na forma definitiva de
a fazer chegar ao infantário.
Cláudia
toca enquanto as pessoas passam e sorriem e os pombos ganham coragem para
regressar ao solo onde a chuva estivera antes a passear-se. A melodia de
Cláudia é agora um adágio bonito que fez as pessoas parar junto ao nosso banco.
Durante o
adágio algo de inesperado acontece com a caixinha dos desejos dos meninos do infantário.
A tampa deslocou-se ligeiramente e da fresta imagine-se. Saem borboletas que
esvoaçam à nossa volta. Só Cláudia não se apercebe porque é cega e está ocupada
a tocar o violino. Relutante resolvo ver o interior da caixa e confirmo que o
seu conteúdo não são os papelinhos das intenções mas sim borboletas. Estas
apressam-se para a abertura e de imediato impelem-se para o espaço à nossa
volta onde esvoaçam brincando e expondo as asas coloridas e majestosas. As
pessoas sorriem ainda mais e sentem-se impelidas a comentar este episódio nada
vulgar mas que de facto estão a testemunhar. Muitas fotos são tiradas a partir
dos telemóveis. Uma das educadoras voltou à praça para recuperar a caixinha dos
desejos e assiste surpreendida à metamorfose dos desejos em borboletas. Olhou
para mim e depois de novo para a caixa de onde ainda saem borboletas. Está
incrédula soltando um "Hhaa..." muito sonoro levando logo de seguida uma das mãos
aos lábios. Cláudia continua afoita e aumenta o ritmo das suas melodias.
Quando Cláudia termina as pessoas aplaudem esfuziantes e as borboletas regressam ordenadamente à caixinha dos desejos ou se quisermos chamar ‘Caixinha com os papelinhos das intenções’ de onde as borboletas saíram sem ninguém perceber como foram lá parar.
A educadora resolve pegar na caixinha com muito cuidado. E muito devagarinho remove a tampa quando solta um novo "Hhaa…" muito sonoro. Afinal de contas neste momento após a retirada da tampa a caixinha dos desejos já não contém borboletas mas sim os papelinhos com as palavras que tinham sido atribuídas a cada criança.
A educadora absorta e eletrizada olha para mim e eu fico a olhar para a educadora. Até que me ocorre.
"Cláudia volta lá a tocar o teu violino…"
Quando Cláudia termina as pessoas aplaudem esfuziantes e as borboletas regressam ordenadamente à caixinha dos desejos ou se quisermos chamar ‘Caixinha com os papelinhos das intenções’ de onde as borboletas saíram sem ninguém perceber como foram lá parar.
A educadora resolve pegar na caixinha com muito cuidado. E muito devagarinho remove a tampa quando solta um novo "Hhaa…" muito sonoro. Afinal de contas neste momento após a retirada da tampa a caixinha dos desejos já não contém borboletas mas sim os papelinhos com as palavras que tinham sido atribuídas a cada criança.
A educadora absorta e eletrizada olha para mim e eu fico a olhar para a educadora. Até que me ocorre.
"Cláudia volta lá a tocar o teu violino…"
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito Grato Emília. bem haja :)
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